As pessoas se conhecem pelo nome, se reúnem na pracinha e artistas encontram inspiração
“É uma relíquia! Uma maravilha viver e sobreviver da pesca. Agradeço a Deus todos os dias por ter nascido e me criado aqui”, resume o pescador Roberto Soares, 63 anos, que não mede palavras para destacar o bairro que deu origem a Balneário Camboriú. A Barra foi fundada em 1920 e deu início à história da cidade, assim como à história de Roberto. Ele nasceu e cresceu na Barra, pesca desde os 15 anos e é hoje uma das pessoas mais conhecidas da margem direita do rio Camboriú.
Embora o tempo tenha passado e o bairro esteja em frente a alguns dos maiores arranha-céus da América do Sul na efervescente Barra Sul, separados apenas pelo rio Camboriú, a Barra continua sendo Barra. Lá as pessoas se conhecem, jovens ainda se reúnem na pracinha, artistas encontram inspiração.
“Quem mora aqui prefere o lado de cá. É mais calmo, mais tranquilo, a gente aproveita a vida”, opina o pescador. “Nós pescamos aqui e tudo o que capturamos é entregue na salga. Isso garante a nossa renda e é fundamental a manutenção da salga para que o pescador tenha onde entregar seu peixe. Temos postos de saúde, escolas, ruas bem cuidadas. Não tem porque atravessar a passarela,"elogia.
Outro que conhece muito bem a realidade da Barra é o aposentado Hélio Manoel da Rocha, 76 anos, conhecido por “Lélo do Maneca” ou “Lélo da Irene”. Ele é filho de Manoel Firmino da Rocha, que foi o balseiro que fez por mais de 30 anos a travessia entre a Barra e Balneário Camboriú, e que dá nome à moderna passarela que desde 2016 une a Barra à Barra Sul.
Lélo conta que aos nove anos de idade já ajudava o pai na travessia. A primeira balsa era uma chata em madeira, de pequeno porte, que atravessava basicamente pedestres e bicicletas. Essa balsa foi logo substituída por uma maior com capacidade para um carro ou uma carroça, que depois acabou dando lugar a uma embarcação maior. Só que essas balsas não tinham motor, ou seja, eram movidas “no Bambu”, ou seja, era uma estaca que, apoiada no fundo do rio, impulsionava a balsa.
O “Maneco” explorou a travessia com a balsa até a abertura da BR 101, no final dos anos 1960, mas aí continuou fazendo a travessia de pedestres até a década de 1980, com uma bateira a remo. Lélo conta que embora a família residisse na Barra Sul, onde hoje são as torres dos edifícios, ele tem a Barra como seu reduto preferido.
Elis busca no cotidiano a inspiração para sua arte
A artista plástica e ceramista autoral Elis Teixeira veio com a família para a Barra no início dos anos 1970, ainda bebê de colo, no auge da extração de pedras. A família construiu sua vida no bairro e seus irmãos mais novos nasceram no local. É por meio da arte que ela transmite seu amor pela Barra, que é sua maior fonte de inspiração.
“Minha arte inspira-se no subjetivo feminino e nas minhas vivências no bairro. A calmaria daqui me apruma e norteia o meu processo criativo. Sou a adulta que revisita a infância pacata e toda a poesia que a inspirou: os varais estendidos por bambus que ainda existem, as tramas das redes dos pescadores, as folhas das plantas nativas e toda a simplicidade e amorosidade do seu povo”, diz a artista.
Ela acrescenta que sua identidade artística é pautada na sua verdade. “E minha verdade é honrar todo amor que a Barra me deu”, acrescenta.
Essa verdade, segundo Elis, está na sua arte e é alimentada por histórias e memórias construídas entre pescadores e broqueiros. “Busco perpetuar nossa cultura, nossos valores e a mata da morraria; procuro me utilizar destes elementos para compor minhas esculturas em cerâmica”, explica. Elis classifica o local como uma grande família acolhedora, onde mantém relações de amizade muito antigas, onde todos se cuidam e se importam. É como se fosse uma pequena vila interiorana na grande cidade. “Esta característica me comove e me mantém aqui, vivendo e trabalhando”, destaca.
Júlio troca pescaria pela capela Santo Amaro
Júlio César Alexandre, 50 anos, é outro morador que representa a simplicidade e o altruísmo do povo da Barra. Filho de pescadores, Júlio também pescou por mais de 30 anos, dos 12 aos 43 anos. A partir de 1996, ele e a esposa Solange passaram a trabalhar como zeladores na capela de Santo Amaro, edificada por volta de 1810 com pedra bruta e argamassa à base de óleo de baleia, na época dos escravizados.
O casal passou a morar na casa paroquial para garantir a segurança do lugar e abrir esporadicamente a igreja durante a semana para visitação. Também passou a cuidar dos jardins e da manutenção. Ele ainda pescava para a subsistência e seus trabalhos eram pagos pela comunidade.
Em 1998, Júlio foi aprovado em um concurso público do município e acabou sendo lotado na igreja. O objetivo era manter o local aberto à visitação pública e difundir as origens açorianas, já que a edificação é o único marco da passagem dos portugueses por Balneário Camboriú. Mesmo assim, ele não conseguia se desvencilhar da tradição da pesca e esporadicamente se aventurava no mar.
Júlio conta que só deixou mesmo de pescar três anos antes de ser ordenado diácono. “Vendi meu barquinho de pesca e todos os meus petrechos para me dedicar somente aos estudos”, lembra. Júlio foi ordenado diácono em setembro do ano passado e, desde então, se dedica à religião e ações sociais da igreja e ao seu trabalho de zeladoria da capela.
Fotos: Joca Baggio e arquivo pessoal